Espere aqui. Quero falar com você. De madrugada, passei pelo pai de Davi e disse, espere aqui, quero falar com você. Na volta, eu trouxe café, em retribuição e companhia naquela noite difícil. Davi estava no primeiro pós operatório de uma cirurgia cardíaca complexa e naquela noite, eu estava acordada em vigilância, assim como o pai. Eu me senti muito digna e solidária ao trazer um café bastante ordinário de uma máquina de corredor. Ofereci com grandeza e afetação, um sorriso meio descolado do momento. O pai estava em pé, pálido como uma nuvem, mal segurou o copo e só então, percebi a minha falta de responsabilidade. Eu anunciei num corredor de hospital: es-pe-re a-qui, que-ro fa-lar-com-vo-cê. Naqueles minutos em que deixei o pai sozinho, ele temia pelo pior. Repeti na cabeça, espere, falar com você… olhei para o copo fumegante, a bebida quente parecia preceder ou amenizar um anunciado infeliz. Quando entendi seu desbotamento, pedi desculpas e o coração do pai retomou o compasso. Ri nervosa e envergonhada, ele também riu, aliviado.

Contexto. Em minha defesa, vou explicar a cena do café. Eu apenas devolvi uma gentileza de Rômulo, o pai. Na UTI do Hospital Anchieta, ele e outros pais tomaram uma iniciativa inédita. Por algumas semanas, eles tornaram aquele ambiente mais leve e apetitoso com sabores e aromas. Não lembro quem foi o primeiro, mas a cada semana, havia uma surpresa, por exemplo, um almoço em pleno domingo de plantão. Cada acompanhante trazia um prato e surgia uma refeição solidária na salinha de acolhimento. Nós, médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, éramos convidados especiais. Teve arroz carreteiro, caldo, canjica, até chocolate quente. Numa noite fria, Rômulo apareceu na salinha de prescrição e nos ofereceu aquele carinho em forma de caneca. Ele e outros pais formaram um grupo de amigos que continuaram a se encontrar por algum tempo, mesmo após a alta das crianças. Eles promoviam encontros e celebravam a vida, apesar da pausa dramática daquelas internações, ou talvez, por conta delas.

Um dia, alguns anos depois, Davi foi internado no hospital que trabalho atualmente. Ele estava enorme, mas ainda precisava de cuidados e internações pontuais. Quando reconheci a família, agradeci, atrasada, aquele tempo bom de cortesia compartilhada. Lembrei do susto do café e Rebeca, a mãe, riu da história. Após alguns ajustes terapêuticos, Davi recebeu alta e eu pensei em escrever sobre aquela noite de mal entendidos, pensei em falar com os pais. Pedi o contato da família Dal Asta ao Dr Maurício, cardiologista de Davi. Mandei a mensagem naquela mesma noite. Oi, me chamo Suzana, sou a médica da UTI, espero que se lembrem de mim, queria conversar com vocês. Esperei uma resposta, mas acabei dormindo. No dia seguinte, conferi o celular. Oi, Dra. Aconteceu alguma coisa?

Tive que reiniciar a conversa em tom tranquilo, está tudo bem, calma, quero falar de uma coisa boa. Putz, aconteceu de novo. Mais uma vez, o pai temeu por uma notícia bombástica. Talvez eu tivesse checado algum exame, talvez houvesse algum resultado ruim. Eu, porta-voz do fim do mundo. Imagino Rômulo apreensivo e aliviado, mais uma vez. Rebeca perguntando, qual o problema dessa doutora?

convite da família na UTI

3 respostas para “Davi passa bem”.

  1. Avatar de Maria Elizabeth Monteiro de Castro Silva
    Maria Elizabeth Monteiro de Castro Silva

    Lindo texto! Muito obrigada por compartilhar! Gosto de ler sobre suas experiências!

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  2. Avatar de Rômulo Davi Albuquerque Andrade
    Rômulo Davi Albuquerque Andrade

    O Davi chegou em nossas vidas lindo em forte, com ele, chegaram novas vidas que cuidam de todos os corações até hoje. Dra. Suzana e toda equipe médica, muito obrigado por todo carinho e amor.

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  3. Avatar de Ricardo
    Ricardo

    eu posso imaginar os sustos desse pai 😁

    excelente história!

    Curtido por 1 pessoa

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