Naquela quinta, Dra Mércia não podia participar, então pedi ajuda à Dra Lilian para escolher um texto, uma sugestão de leitura para iniciar a conversa. Ficamos na dúvida, Lilian escolheu um texto sobre a maternidade de Cora Coralina e eu, subversiva, fui de Leminski e os probleminhas. Ganhei, pois apareceram 2 pais e apenas 1 mãe. Falaríamos de maternidade em outra ocasião. Após cada um se apresentar, um momento meio – meu nome é Bruce, Fabiano, o pai de Daniel, foi gentil e se ofereceu para ler o poema. Ele estava em uma extremidade da nossa roda ovalada de corredor, leu com bastante entonação, se atrapalhou com algumas vírgulas, terminou pensativo. Em seguida, abriu-se uma discussão, afinal, os problemas aparecem ou desaparecem aos domingos? Eu acho que a família grande, Sr e Sra Problema passeiam com a gente, mas teve quem achou que aos domingos, eles passeiam em outro lugar.

O pai de Daniel pediu novamente a palavra, ele usou o gancho – problema e contou sobre a internação de Daniel, no dia de seu aniversário de 4 anos. Eu estava de plantão quando aquele menino chateado chegou, alguns dias antes. O menino resmungava e pedia ao pai que massageasse sua barriga. Pai e mãe foram muito educados e explicaram o diagnóstico do filho. A doença rara tinha instruções e eles me entregaram um relatório complexo, escrito por uma geneticista. O texto indicava dieta e medicamentos com dosagens e horários rigorosos. Os problemas estavam lá, aos sábados, domingos e feriados, sem dúvida. Daniel participava da reunião, escutava o pai contar aquela história. Ele estava bem, cantava bate o sino pequenino, distraído e apoiado entre as pernas do pai, que continuava a falar. Daniel abraçava um bichinho de brinquedo que vez ou outra, caía no chão, o pai esticava o braço e devolvia ao menino.  

O pai pediu licença para continuar, concordamos em silêncio com nossas cabeças curiosas.  Ele contou sobre alguns anos atrás, quando sua vida estava plena e, em suas palavras, ele nadava de braçada, de costas e ainda cuspia água para cima. Tudo certo, era um militar na reserva, filhos crescidos, tinha saúde, estabilidade e tudo que consideramos conquistas vitais. Numa guinada da vida, ele estava com um novo filho na UTI, um diagnóstico bombástico e a necessidade de um medicamento difícil de conseguir.  Um dia, ele precisou sair do hospital para buscar o medicamento em um edifício conhecido na cidade, de estacionamento complicado e burocracias na entrada. Ele passou pela catraca do prédio e viu uma menina, ou seria menino, de piercing, cabelos curtos, uma roupa diferente.  Ela o encarou e perguntou sobre a sua cara ruim. Eu achei a descrição do encontro problemática, fiquei apreensiva, mas entendi a mensagem. Ninguém sabe o que os outros passam, sejam pessoas fardadas ou de cabelos coloridos.   Ele continuou falando de seu desconforto, e que normalmente não conversaria com uma pessoa com aquelas características. Nesse momento, eu me preocupei com o rumo da história. A menina voltou a falar e disse que não sabia nada sobre ele, acrescentou algumas palavras de conforto e disse a frase, aprenda a pedir. Foi embora.

Fabiano fez uma pausa, olhou para o filho e depois para a gente, tremeu a voz e disse que, no dia daquele encontro, ele realmente se via em um caminho tortuoso e cheio de espinhos, desejava de fato, ter sua vida pacata de volta. Ele pegou mais uma vez o brinquedo do chão, segurou entre as mãos e ponderou. Ter sua vida de volta, significaria não ter Daniel ao seu lado. Entregou o bichinho ao filho. Ele considerou aquela dupla um encontro de almas, afirmou que ninguém poderia amar mais aquela criança do que ele.  Daniel continuava a cantar e eu cantei junto, sino de Belém, sino de Belém, disfarçando as gotinhas que me apareceram nos olhos. Olhei em volta, todos na mesma situação. Quase montamos um coral natalino, em janeiro.

Marcos, nosso técnico de enfermagem, nos fez lembrar do Auto da Compadecida, a ideia de Deus nos aparecer de diferentes formas, desta vez, atrás de alguns piercings, para um coronel da reserva. Chutei a patente, para acertar outra ideia, a transformação de um nado em maremoto em um belo nado sincronizado, de frente e de costas, quando a companhia desvira problema e se torna uma solução plena, delicada e elementar.

Suzana Berlim, janeiro 2025

Quinta-feira às 14h, sempre nesse horário, chamamos os pais e acompanhantes para a Roda de Conversa. Dra Mércia, já aposentada, é a idealizadora do projeto e nossa guru quando o assunto é humanização no ambiente hospitalar. No início das tardes de quinta, antes dela chegar, arrumamos algumas cadeiras no corredor e batemos levemente nas portas dos quartos, como um aviso. As reuniões têm uma proposta nobre, mas nem sempre se encaixam na rotina dos acompanhantes, atarefados em novas demandas e preocupações.

Dra Mércia comanda, eu e a psicóloga Letícia nos alternamos nas anotações. As reuniões são imprevisíveis e participam dela, de zero à muitas famílias.  Às vezes, as reuniões são engraçadas, outras vezes tristes, podem ser um desabafo aleatório sobre o mau funcionamento do ar-condicionado ou uma sugestão de cardápio para o almoço. Desistimos da condução e apenas nos adaptamos a surpresa, gosto do imprevisto, que fica registrado num livro de reuniões.  Às vezes, os imprevistos viram histórias.

Após 1 semana da alta de Daniel, escrevi essa história e mandei para os pais. Pedi que voltassem ao hospital, eu queria uma foto! Entre consultas e medicamentos, eles acharam um tempinho e apareceram no meio da tarde para um passeio no jardim. Daniel tem esse olhar confiante, essa alegria de viver, capturada pela lente de uma médica fotógrafa atrapalhada e fugitiva, que precisava voltar logo ao seu posto. Teve papel voando no laguinho, teve coceira de grama e carrapicho na barras de nossas calças. Obrigada papais Fabiano e Carla, obrigada Daniel, pela alegria e gentileza da visita.

Quem quiser saber mais sobre essa família, sobre o diagnóstico de Daniel e sobre as aventuras desse menino incrível, o instagram é @vozparararas.

E para quem curte poema:

Bem no fundo
no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas

Paulo Leminski

4 respostas para “Bate o sino, Daniel”.

  1. Avatar de Carla Vanessa
    Carla Vanessa

    Obrigada por tamanha sensibilidade, Dra Suzana! E que vc continue proporcionando essa humanização para todos os pacientes que tiverem oportunidade de serem cuidados por vc e sua equipe! 💖

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  2. Avatar de Tayná Amancio
    Tayná Amancio

    Sensibilidade. Palavra repetida muitas vezes nos comentários das histórias aqui contadas e que traduzem exatamente a forma com que somos tratados pela Dra. Suzana. Muito obrigada, por tanta sensibilidade conosco, pacientes e pais, e com a narrativa das histórias.

    Hoje, ao recebermos alta da UTI, a Marina respondeu que não sabia o que queria ser quando crescesse. Assim que a Sra saiu do leito, ela foi até o corredor e me disse “Mamãe, talvez eu queira ser médica.”

    Muita luz na sua vida, Dra🙏

    Curtido por 1 pessoa

    1. Avatar de SUZANA BERLIM
      SUZANA BERLIM

      Caramba. Como os encontros são especiais, quase sempre. Estava almoçando com os meus sobrinhos e comentei sobre a Marina. Peguei o celular e vi a mensagem no site. Que menina inteligente e simpática. Fiquei pensativa sobre a cadeira para canhotos, poxa… todos os destros se sentam e os canhotos precisam achar a carteira específica. Injusto. Ser canhotinha torna Marina ainda mais especial, né? Bem que a Dra Roberta me avisou. Na passagem de plantão, ela disse, Marina, 10 anos… Suzi, você vai adorar essa menina!

      Obrigada pelo encontro, conversa e inspiração!

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