Eu já estava no final da minha licença médica. Após vários meses, o contato com meus colegas médicos eram mensagens de carinho e torcida. Eu saí dos grupos que trocavam mensagens sobre exames laboratoriais, imagens radiológicas, escalas de plantão, eu estava vivendo outro momento, ainda com dúvidas se estava vivendo do modo certo. Um dia, Dra Bárbara me mandou uma mensagem de voz: Suzi, preciso te contar uma história. Semana passada, internamos uma criança de 8 anos, uma queda de cavalo, fraturou a mão e precisou de 2 cirurgias. Ela é uma figura. Está indignada, viu o mural com umas fotos antigas e disse que precisávamos colocar sua foto para contar sua história de superação. Expliquei que você estava de licença, mas ela não aceitou, achei graça. Beijos, volte logo. Recebi a mensagem com desconfiança das verdadeiras intenções da minha amiga. Depois de um tempo, respondi: você está me testando, eu sei. Mais um tempo: até quando ela fica internada? Até amanhã.

Autorizei minha amiga a passar o meu contato para a família. E começamos a conversar. A mãe me contou a história e mandou vídeos da menina no hospital e em festas, cavalgando, fazendo ginástica artística. Uma criança cheia de talentos. Marcamos uma chamada de vídeo e conseguimos nos falar no sábado, uma semana após a alta hospitalar. Me apresentei aos pais e depois para Ana Luíza. Tímidas, iniciamos uma conversa meio sem jeito. Elogiei sua beleza, sua valentia e percebi que fora do hospital, não sei muito o que dizer para essas crianças. Talvez, a figura da médica que brinca seja o meu melhor disfarce, sou uma pessoa grande que fala alto, chego séria, de óculos e máscara. Já me contaram que eu assusto um pouco, por me apresentar de modo impositivo e questionador. Aparento ser brava, às vezes sou mesmo, mas não com crianças, isso nunca. Gosto de quebrar a expectativa e fazer uma careta engraçada para o pequeno enquanto converso com os pais. Gosto de fazer piadas, ofereço colo e faço os mais rápidos balões de luva do centro-oeste.

Ana Luíza estava pronta para uma entrevista que eu não sabia fazer, perguntei sobre sua experiência na UTI. Ela falou que adorou as pessoas, assim, de cara. Não falou nada sobre dor, medo ou tédio. Menina sábia e otimista, me identifiquei como paciente que fui, e contadora de histórias que sou. Ela soube lidar com os dias, escolheu pensar em sua superação, sobre como contaria sua trajetória. O acidente foi grave, poderia ter sido fatal, o trauma craniano nem foi citado naquela conversa. Ela me mostrou o dedinho quebrado com um fixador externo e eu me recolhi agoniada, disfarcei e falei que ela era corajosa demais. Percebi que pessoas passavam por trás da menina, a mãe explicou, era o dia da sua festa de aniversário e os convidados estavam chegando. Que vergonha, eu não queria atrapalhar e ficamos de conversar depois.

Eu passei semanas com meia história e uma culpa inteira por não escrever sobre aquele relato intenso de alegria e superação. Eu estava em despedida da parte pequena da minha família que mora longe, grudada em cinco sobrinhos que bagunçaram a minha vida e dividiram meu coração, me preparava para retornar ao trabalho, aos projetos. Com emoção e expectativas a mil, não conseguia escrever nada. Soube que Ana Luíza voltaria ao hospital para retirar os pininhos, no dia do meu plantão. Pedi para a mãe que passasse na UTI ou me contasse onde estaria. Aquela sexta também era o dia da cirurgia da Catarina, da despedida da Jajá e do passeio da Joana, eu era somente correria entre tantas tarefas. Olhei meu celular, a mãe de Ana Luíza não havia me respondido. Eu estava encarregada de tirar fotos do passeio de Joana no jardim, um plano delicado que envolvia uma parte da equipe da UTI. O berço saiu em comboio, bem devagar, cruzando o corredor principal e os olhares curiosos, eu saí logo atrás.

Quando passei na frente do elevador, eu vi Ana Luiza, na verdade, um pedacinho dela, enquanto a porta se fechava. Reconheci sua silhueta sentada numa cadeira de rodas, ou apenas desejei ter visto. Chamei o nome de Ana Luíza, mas ela não me ouviu. Olhei para o comboio do passeio, que se afastava lentamente, berço, pais, suporte de soro, ventilador, médica, enfermeira, fisioterapeuta e psicóloga, e eu, parada diante da porta do elevador. Olhei para frente e para a direita, indecisa. Apertei o botão, sentido para cima e para baixo, aquele indicador nervoso, sob o olhar de desprezo e incompreensão dos outros futuros passageiros ao meu lado. Era ela, tenho certeza, mas para onde está indo? Perguntei alto, ei, vocês viram a Ana Luiza? Me responderam sem me olhar, concentrados naquele transporte delicado. Sim, ela está indo embora. Voltei para os botões, eu estava no andar térreo, perto da saída principal. Talvez ela tenha ido se despedir de alguém, pulei para dentro do elevador paralelo, pedi para o ascensorista imaginário, siga aquele elevador, rápido. Procurei Ana Luíza no andar de baixo, no de cima, de novo no térreo. Para os passantes, eu devia estar no meio de uma intercorrência muito grave, ia salvar alguém, certeza. Mandei mensagem para a mãe, onde estão, onde estão? Corri para alcançar outro pedaço de uma história e senti falta do meu pedaço de pulmão perdido. Não viram a minha mensagem. Cheguei ofegante e frustrada ao jardim, mas logo me conectei ao banho de sol e ternura de Joana. Tirei muitas fotos.

De volta à UTI, contei sobre o desencontro, escutei mais um pedaço do que me faltava para escrever. A fisioterapeuta contou que durante a recuperação, um dia, ofereceu canetas e uma folha de papel para Ana Luísa, para que ela pudesse treinar a coordenação mais fina da mão direita. Ela segurou a caneta com esforço e começou a escrever algumas letras, entregou o papel com a palavra superação, muito bem escrita. Ela estava realmente focada em escrever sua história.

Desculpe, Ana, deixo o espaço para que você conte um pouco sobre o que desejar. Obrigada, menina que não encontrei, que uma porta separou, mas que compartilhou comigo os propósitos mais positivos. Estou de volta, apareça para a gente se conhecer e matar nossa saudade imaginada.


3 respostas para “Procura-se uma história, e uma menina”.

  1. Avatar de BARBARA LALINKA DE BILBAO BASILIO
    BARBARA LALINKA DE BILBAO BASILIO

    Eu amo a sua escrita, Suzi. Que talento! Ana Luiza, a menina valente, que também amei conhecer! ♥️

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  2. Avatar de Célia
    Célia

    Dra Suzana!!

    A menina, Ana Luíza, só te deu um start, explico:

    SUPERAÇÃO é seu sobrenome Suzana Berlim!

    Vai chegar a hora de encontrar-se novamente com a pequena menina, porém, antes disso é necessário que a sua menina interior escreva sua própria história: Naquele instante!!!

    Você é incrível!

    Te amo!

    Célia

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  3. Avatar de Ana Luíza
    Ana Luíza

    Oi Dra Suzana, aqui é Ana Luíza, tudo bem?

    Fiquei muito feliz em ver a publicação da minha história de superação. Desde o primeiro momento que vi os murais que a senhora constrói lá na UTIPE, me chamou a atenção. Me emocionei com aquelas histórias de crianças que passaram por lá, assim como eu. Espero que a minha história também sirva de força, esperança e fé para alguém. Hoje estou bem, graças a Deus!! Retomando a normalidade do dia a dia, estudando, fazendo fisioterapia e aproveitando a vida! Obrigada pelo carinho!

    OBS: Precisamos nos conhecer…

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