Cadê a minha foto? E a minha história? Recebi a cobrança de Gabriel pela minha chefe Vivi, uma semana após a exposição no hospital. Gabriel soube da exposição de fotos pelas redes sociais, mandou mensagem, pois reconheceu alguns pacientes antigos, achou que ele e sua filha Sophia deveriam estar ali.
Para a exposição, eu tive pouco tempo para organizar tudo, já tinha alguns pôsteres mas a direção me permitiu mais fotos. Fui buscar no acervo de mais de mil imagens. Eu separei algumas e fui entrando em contato com os pais, anotando quem me permitia expor. Gabriel não me respondeu, mostrei pra chefe, ele não me respondeu, veja.
Gabriel era um pai que mudou de telefone. Não tive culpa. Queria que ele entendesse, Gabriel, a foto não saiu nessa exposição, mas teremos outras. Sobre a história, ah, nem toda foto tem história e escrever é diferente. Escrever exige um momento. Eu tenho momentos, mas nenhuma rotina. Eu já tentei estabelecer um horário criativo, mas não acontesse assim. Escrevo quando acontece.
Vivi me passou o novo telefone de Gabriel, guardei o número e a demanda na estante de histórias para desenvolver. Não prometi nada, tenho muitas histórias na cabeça, na estante e em algum lugar do coração. Um dia, aconteceu da história de Gabriel e Sophia cair sem querer. Eu tinha acabado de chegar em casa, cansada após 12 horas de plantão. Pensei, calma, só guardar de novo. Pois bem, não consegui recolocar ali, entre uma e outra possibilidade narrativa, aquelas, empilhadas em montinhos invisíveis. As palavras já estavam todas espalhadas e não consegui mais juntá-las sem colocá-las em ordem. Comecei a alinhar, palavras, palavras e pequenas frases. E depois de uma introdução, rodeios e contexto, resolvi desenvolver alguma coisa, sobre Sophia, a criança, e o pai, Gabriel.
Comecei sobre Gabriel, o pai. Naquela época, poderia até ser um de nossos pacientes, ele tinha 16 anos. Ou impaciente, posso dizer. Em uma tarde, ele me esperava para uma conversa. Eu sabia que ele tinha dúvidas, Sophia esperava por um procedimento nos próximos dias. Tentei convencê-lo que estava nos meus planos, explicar sobre os exames, estratégias e riscos. Ele tinha pressa e eu tinha muito trabalho. Tentei me organizar ao máximo para resolver todas as pendências e conversar pelo tempo que precisasse, mas quando fosse possível.
Gabriel não entendia e aparecia na porta do quarto, toda vez que eu passava pelo corredor. Eu dizia, já vou, espere mais um pouco. Gabriel se cansou. Pediu para chamar minha colega de plantão, reclamou que eu estava demorando. Recebi o recado e fiquei brava. Entrei no quarto, muito valente, e falei para o menino, sentado e constrangido, que ele não deveria ter feito uma reclamação, deveria ter esperado. Ele ficou calado. Me contaram que chorou quando eu saí. Já no fim do plantão, fiquei chateada com toda aquela história mal explicada. Ele fez uma queixa na ouvidoria, da minha falta de atenção e gentileza. Vivi me chamou no outro dia para conversar. Me senti mal. Como eu pude não ser gentil com um adolescente que cuidava de sua filha na UTI, que tipo de pessoa eu havia me tornado.
A chefia, na tentativa de mediar o conflito, sugeriu a Gabriel escolher outro médico nos meus dias de plantão. Ele, na mesma hora, respondeu que sabia que eu era uma boa profissional e queria o melhor para Sophia, não entendeu a proposta. Sua maturidade me deixou ainda mais sem jeito. Na semana seguinte, comecei o dia pedindo licença, e entrei em seu quarto. Me sentei de frente para Gabriel e pedi desculpas, olhando em seus olhos. Expliquei minha intenção, me desculpei por não entender a sua urgência de jovem pai. Que poderíamos ter conversado um pouco e deixado o restante da conversa para quando eu tivesse mais tempo, como sugeri. Sim, poderia ter acolhido sua angústia e ter me explicado com mais delicadeza. Contei que me senti uma madrasta de história infantil, uma professora brava que põe o aluno de castigo. Me senti cruel por se tratar de um pai-criança e não um adulto-pai, muitas vezes, mais inoportuno e inconveniente, que me provocaria a mesma indignação, mas uma reação mais contida. Me senti covarde.
Naquela semana, me coloquei à disposição para dar algumas aulas sobre dinâmica de equipe, para vários grupos de profissionais. Queria desfazer minha fama de bruxa por ali. As aulas foram um sucesso, a chefia gostou, mas ainda faltava algo. Sophia faria aniversário dali a alguns dias e eu sugeri tirar algumas fotos da família.
No dia marcado, Gabriel me recebeu com alegria e gratidão, não por um acordo exigido, mas por um sentimento que consideramos pendente. Em nenhum momento, ele teve qualquer postura que lembrasse o nosso desentendimento. Nos perdoamos com o olhar e algumas lições. Eu nunca mais deixei uma preocupação suspensa, pelo menos não da mesma forma. Tenho mais cuidado ao explicar minha rotina, mesmo para adultos mais exigentes e menos doces que Gabriel.
Ano passado, Sophia foi internada novamente na UTI. Reconheci Gabriel maior de idade, ainda meio menino, após 4 anos. Nos cumprimentamos como velhos amigos, apesar da falta de contato. Sophia estava enorme e tratava de uma infecção na perna há 1 mês, a perninha inchada e vermelha. Eu reconheci aquela cena de algum lugar. Lembrei da faculdade, lembrei da minha falecida avó, também cadeirante, também com aquele pé apontado de lado. Perguntei se ela havia caído. Como Sophia não tem sensibilidade nas pernas, era difícil dizer, Gabriel achava que não, mas não podia afirmar se algo havia acontecido em sua ausência. Pedi um RX e comprovei minha suspeita, uma fratura no fêmur. Gabriel estava admirado, Dra Suzana, só você. Novamente, nossas histórias se cruzavam, dessa vez, eu toda certa nas palavras, gentileza e diagnóstico, uma tia boazinha para Sophia e Gabriel.
Pronto, contei a nossa história, Gabriel. Sei que você comentou com a Vivi como eu fazia parte das suas lembranças da UTI, nas duas internações. Você tinha razão, eu tinha que contar, é justo. O pôster fica para a próxima exposição, já está certo. Por enquanto, essa é mais uma página dos nossos encontros. Para ilustrar, escolhi algumas fotos da Sophia na Páscoa e no aniversário em 2019. Escolhi uma comigo, não me lembro quem tirou. Eu, atrapalhada e cheia de boa intenção, como algumas histórias, que nem sempre queremos contar.
Suzana Berlim (2024)



