Hoje, vou falar de Heloísa. Vamos dizer que, algumas crianças são pequenos passageiros que descem em estações muito próximas da partida. Ou sobem antes da chegada, me confundo entre baldeações, eu não entendo nada disso. Estou tentando dizer algo difícil em metáfora e poesia. Não quero escrever uma crônica triste, eu quero apenas banhar em ouro o bilhete da passagem para o lado de lá, quero criar uma lembrança dourada, quero presentear sua família, dizer baixinho, eu me lembro.

Sempre que ando por cemitérios, em cortejo ou turismo acidental, encontro crianças. Explico. Eu me deparo, sem querer, com datas exatas, de conta fácil, que eu consigo fazer nos dedos das mãos. Já me perguntei como isso acontece, eu vejo 1,2, 3 anos e comento, olha, uma criança. Assombro, sem querer, quem está ao meu lado, não aponto mais, aprendi a ficar em silêncio. Não é um interesse mórbido, nada disso, mas uma curiosidade que me desperta, onde estão, todas elas? Acho que estão se escondendo por ali, por brincadeira. Imagino, em devaneio e distração, uma grande brinquedoteca, sem protetores de quinas, sem quinas, na verdade, nem chão duro ao final do escorrega, apenas nuvens fofinhas em tons suaves. Ah, esse céu, quero morar nesse pedaço quando estiver do lado de lá. Tenho ideias, histórias e colinho para uma eternidade. Meu céu algodão doce.

Sim, as crianças partem. Não entendo, nem quero. Vou discordar de qualquer explicação filosófica ou espiritual e não é sobre isso que quero falar. Tenho apenas sugestões para um Estatuto Celestial da Criança e Adolescente. Na entrada, por exemplo, é obrigatório passar por um aparelho esquecedor de qualquer sofrimento, um corredor chuveirada, como aquele antes de chegar na piscina, só que mais suave e menos frio.  Algumas crianças terão que passar bem devagar, outras, mais de uma vez. Medo e dor não entram, escoam pelos ralos para muito longe.  Por lei, haverá visitas regulares em sonhos, sempre bons, para família e amigos, em dias de saudade.  Pipoca  e sorvete ficam em potes infinitos, tem pé mágico de fruta preferida e até de feijão amassadinho. Por qualquer lado, há pula-pula para piruetas antigravitacionais, karaokê com adivinhador de música, nuvens sonecas para cochilos quentinhos. Muitos brinquedos que se duplicam ou triplicam, por mágica. Não tem briga por brinquedo, nem choro.

Um dia, quero encontrar alguns amiguinhos. Pensei na Heloísa, porque sua lembrança, hoje, me fez escrever. Vou contar sobre a menininha de 1 ano e poucos meses que conheci na UTI.  Tive o privilégio de conhecer e fotografar essa menina inteligente e divertida. No ensaio para o Dia dos Pais, fotografei uma colagem, muitas figurinhas na testa de um papai muito compreensivo. Sua sapequice também foi registrada no colo da farmacêutica Vicky, assim como um passeio de rodinhas na madrugada.

Em plantões noturnos, eu observava sua impaciência. A menina queria caminhar, eu chamava a atenção, Lolô, vai dormir, meia noite. Um dia, deixei de reclamar e ajudei seu passeio. Coloquei seus pezinhos sobre o suporte de soro e, mesmo contra as regras de segurança hospitalar, a deixei deslizar pelos corredores, empurrada por Patrícia, sua mãe. A menina seguia ligada ao suporte por um fio, um cateter com soro e medicamentos. Mãe e filha, ligadas pela aventura e insônia, iam e voltavam, sorridentes. Cliquei, claro. Não era ensaio, mas a cena era uma doce transgressão na madrugada e, eu, ser noturna, me reconheci e participei.

Lolô estava sempre acompanhada de sua família, era arisca com quem não se sentia próxima, mas tinha alguns preferidos entre a equipe. Eu definitivamente não era um deles. Para mim, fazia cara brava, não importava quantos adesivos eu lhe oferecia. Com o tempo, fizemos um acordo. Eu entrava no quarto e ela esticava a mãozinha, ZIVO, pedia. Eu, de bolsos abastecidos, já lhe entregava bichinhos colantes, rendida. Uma transição justa e sem rodeios. Pronto, ela me deixava examinar, sem espaço para gracinhas. Eu obedecia e  agilizava.  Às vezes, eu entrava durante suas refeições. Quando podia, ela enchia um garfo com ovos mexidos ou cuscuz e comia sozinha, dava gosto de ver. Sempre que vejo crianças grandes de cara feia, alimentadas por suas mães, naquele embate manhoso e improdutivo, lembro da independência da pequena Heloísa comendo de garfo. Como uma tia palpiteira, tenho vontade de falar, a Lolô comia sozinha e você aí.

Heloísa esteve conosco em seus últimos meses. Foi um convívio amoroso e delicado. A menina nunca chegou perto da alta, mesmo com melhoras momentâneas, seus exames não permitiam uma fuga, nenhuma intermitência.  As infecções se repetiam e seu corpo era indefeso, uma combinação injusta de um  sistema imunológico ineficaz. As infecções não permitiam avançar para um tratamento como o transplante de medula, sua única chance de cura.

Heloísa tinha seus momentos de alegria que, com o tempo, ficaram menos frequentes. Ela queria apenas aconchego e o peito da mãe, poucas vezes permitido. Era um jejum cruel e intermitente, sua barriga distendia e exigia pausas. Quando podia, Patrícia se encaixava na cama estreita, mãe e filha se grudavam, um abraço que sentia e pressentia. Respiravam o mesmo ar infinito enquanto dormiam.

Em uma noite muito difícil, chamei a mãe e a avó, precisamos conversar. Eu disse firme, vou sedá-la, ela está muito cansada, precisa ser conectada ao ventilador, uma máquina de respirar que trará conforto. A avó, tão doce, azedou o semblante, a mãe ficou muda.  O pai chegou mais tarde, me procurou bravo, perguntou o que eu tinha falado para mãe e avó. Contei a verdade, não dava mais para esperar, eu já havia preparado tudo. Não sei o porquê, mas deixei aquele abraço simbiótico durar uma noite inteira, arriscando uma intervenção de emergência. Sempre nos programamos por etapas, nos adiantamos com o objetivo de oferecer segurança. Eles entenderam minha programação, não concordaram e eu decidi esperar. Vigiei por toda a noite aquele sono contínuo e sufocante, assumi o risco e a responsabilidade, sem qualquer lógica ou ciência. Não separei um abraço, não me permiti ser questionada.  E não fui.

No dia seguinte, Heloísa foi intubada e dormiu sob sedação. A grande aposta era que a nova infecção se resolvesse, em associação de antibióticos, transfusões e estimuladores celulares. Heloísa perdeu a cor e o formato, não era a Lolô baladeira das madrugadas e eu não carregava mais  adesivos nos bolsos. No início de outubro, eu não tive coragem de tirar fotos para o ensaio do Dia das Crianças. Se eu não podia tirar fotos dela, não poderia tirar de mais ninguém. Não consegui sugerir qualquer alegria naquela semana. Tivemos sintonia e empatia com a família, já sentíamos saudade.

Lolô partiu após alguns dias e todos nós ficamos com aquele bilhete na mão, o bilhete dourado que não queríamos, mas que guardamos nos bolsos e no coração. Ficamos meio perdidos na estação em que ela nos deixou, seguimos desanimados em nosso itinerário, mas com uma certeza. Lolô precisava urgente daquele banho de outra dimensão, de novas marias-chiquinhas e chinelinhos de pisar em nuvem. Conferi no Estatuto, estava tudo lá. Em casa, busquei algumas fotos e abri uma nova pasta em meus arquivos fotográficos, galeria Heloísa. E comecei a escrever.

Suzana Berlim (2024)

Quando conversei com Patrícia sobre o texto, enviei uma prévia e tive uma das conversas mais emocionantes da minha vida. Ela chorou muito e disse que faria tudo de novo. Chamou a atenção que não havia fotos suas com a Helô, me permitiu escolher em sua galeria no Instagram. Como boa ilustradora que sou, escolhi Lolô mamando, tomando sopa, e dormindo no colinho da mamãe.

A fotografia não deixa mais a saudade ser transparente, como naquela música do Gil. Podemos sim, ver o que ficou para trás e guardar tudo em posts, álbuns, e no coração.


13 respostas para “O Passeio de Heloísa”.

  1. Avatar de Barbara Lalinka
    Barbara Lalinka

    Suzi, Naquele Instante precisa virar livro. Não me canso de ler seus textos, cheios de poesia e sensibilidade.

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  2. Avatar de Andrea Estrela
    Andrea Estrela

    Ah… que história linda!
    Tenho certeza que nossas crianças terão seu colinho na eternidade, assim como você nos dá esse colo em vida, por meio dos seus abraços e dos seus contos.

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  3. Avatar de mercia lira
    mercia lira

    Muito bonito e emocionante. Crianças realmente não devi

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  4. Avatar de celiamariaholandac
    celiamariaholandac

    Suzana Berlim!! As vezes, a impressão que eu tenho, é que você transcende, sua alma flutua nesse corpo esguio e elegante, mas ela vota, sobretudo no coração dos pequenos. Você é incrível ❤️

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  5. Avatar de Diana Albernaz
    Diana Albernaz

    Que lindo texto… também acredito num céu assim.. cheio de sapequices como as que a Lolô fez por aqui nesses corredores de hospital!

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    1. Avatar de Glaucielle Paula de Sousa Cruz
      Glaucielle Paula de Sousa Cruz

      Obrigada por esse texto, obrigada por nos proporcionar um pouquinho de saudade dentro de um relato de amor, que lindas palavras. Nossa Lolo sempre estará em nossos corações 💕

      Com amor a titia da Heloísa

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  6. Avatar de Michelle
    Michelle

    Sem dúvidas nenhuma que todas as Helôs estão banhadas de amor lá no céu. Difícil para nós a compreensão da divindade de tudo isto.

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  7. Avatar de Mayume
    Mayume

    Que texto emocionante! Parabéns pela sensibilidade! Que fotos especiais! Realmente um privilégio ter acompanhado a Helô.

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  8. Avatar de janaina Rodrigues
    janaina Rodrigues

    Que relato lindo ! Tenho o mesmo pensamento quando vou ao cemitério e vejo que é uma criança ! Certeza que a brinquedoteca do céu deve ser maravilhoso 🎈Deus abençoe sua jornada DRA!

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  9. Avatar de RAYSSA DEBORA ALVES DE PAULA
    RAYSSA DEBORA ALVES DE PAULA

    Que lindoo, quanta verdade em suas palavras e amor… E que a nossa pequena Heloisa esteja na Glória com o nosso Senhor. Em breve estaremos todos nós no paraíso com Cristo! Deus abençoe sua vida. Suzana.

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  10. Avatar de Rafael de Vasconcelos Padrão Costa
    Rafael de Vasconcelos Padrão Costa

    Que história maravilhosa, da doce Heloísa.
    Quis Deus que eu conhecesse seus pais somente após a sua partida, duas pessoas um pouco tímidas, mas extremamente generosos e empáticos.

    Ouvi deles muito poucas histórias a respeito de Lolo, mas entendo que é algo muito mais recente e que ainda dói muito neles, como uma ferida aberta, mas sei também que estão juntos tratando desta questão e que hoje conseguem aceitar um pouco mais que a Helô cumpriu a sua missão e hoje mora no paraíso de pipoca e algodão doce, e que mesmo tendo ficado por um pequeno período aqui, jamais deixará de ser a filhinha dos meus amigos Helton e Paty.

    Obrigado Dr. Suzana por nos apresentar essa história linda através de uma outra visão, da pequena e doce Heloísa e de um família linda, unida e apaixonante, que hoje eu tenho o privilégio de conhecer e conviver.

    Mas também por trazer um visão tão humana e sensível da medicina infantil e seus desafios.

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  11. Avatar de Patricia da Silva Barbosa
    Patricia da Silva Barbosa

    Você sempre será minha luz filha amada 🥹❤️

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  12. Avatar de Lúcia Barbosa
    Lúcia Barbosa

    chorei muito agora lendo essa história, minha sobrinha Heloísa chegou com tanta coisa pra viver, foi precoce em tudo, andou rápido,falou rápido era muito feliz e nos deixou tão cedo, posso não ter sido a tia tão presente,mas os momentos com ela sempre foi incríveis, Helô nos deixou um dia após dia das crianças e nunca esquecerei o quanto era querida e amada, esse texto lindo me fez chorar muito foi lá na alma😭😭😭 mas ela foi muito feliz mesmo doente era muito feliz.

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