Hoje Iza estava agitada. Um pouco mais, na verdade. Quando passei pelo corredor, estava na porta do quarto e agitava um saquinho na mão. Quer amendoim? É do Maranhão. Eu nem sabia que queria, mas aqueles casulinhos são irresistíveis. Peguei alguns e fui para a sala dos médicos, estava apertada. Ali acontecia uma pequena reunião, 4 ou 5 médicos conversavam. Alguém quer? Deixei o bocado em cima da mesa e fui ao banheiro, rapidinho. Quando voltei, a reunião continuava, todos falavam e mastigavam, as casquinhas na mão. Uma cena pra lá de aleatória, pensei de mãos vazias.  Fui buscar mais. Passei pelo posto de enfermagem, descobri um saquinho dissimulado, atrás do telefone. Pedi minha porção. Ao retomar meu lugar ao lado do Dr Murilo, deixei alguns ali, entre os computadores e ao alcance de nossas mãos. Mais tarde, quando convoquei os acompanhantes para a roda de conversa, uma atividade que fazemos semanalmente, Iza me disse que não participaria. Aquela manhã estava diferente, de fato, e percebi que Iza estava triste.

No início da tarde, Iza mudou de ideia e estava lá, menos falante, mas presente. Em poucos minutos pediu desculpas, levantou-se e saiu, tinha marcado uma cabelereira. Ela comentou que fazia pouco tempo que tinha gastado muito com tinturas e outras químicas, uma pena. Mais uma cena aleatória do dia e eu pedi informações aos que ficaram. Ah, a Victória vai cortar o cabelo, estava caindo e embolando, agora entendi, e a Iza também vai cortar, bacana.

Às 3 horas, ela chamou todo mundo ao quarto de sua filha. Nada de amendoim, a hora do lanche tinha acabado e o filme já ia começar. Abri a porta um pouquinho, a plateia de frente para mim soltou gritinhos, Iza, de costas, me convidou em voz alta, pode entrar, doutora. Zilma, a cabelereira, tinha um leão estampado na camiseta, um coração de leão parecia fundamental e sensato, pensei. Observei as mãos rápidas de Zilma sobre Iza, percebi os montinhos de cabelo no chão, levantei os olhos e vi celulares e câmeras em punho, expectativa. No centro do quarto, Victória estava sentada na cama, em seu curta-metragem particular, calma e distraída ao celular, seria a próxima. Não cabia mais ninguém ali, família, amigos, enfermeiros, fisioterapeutas, estavam todos naquele quarto nublado, ou meio que ensolarado, não sei. Difícil explicar, havia uma mistura de lágrimas e sorrisos, vozes e pausas, uma vibração coletiva de coragem, incentivo e compreensão.

Fechei a porta devagarinho, eu cuido de cá, fiquem aí. Atendi outras famílias, anotei algumas coisas, prescrevi remedinhos. Voltei para o abraço e para a fotografia, Iza pediu uma foto com as médicas. Os montinhos no chão ainda estavam lá. Ajeitei com o pé, alguém entendeu e me ajudou. Ah, Dra, só você…  de esquisita, fui chamada de artista, olha só. Não sabiam de nada. Eu não contei que fiz o mesmo quando minha irmã perdeu suas madeixas há muitos anos, e inventei uma brincadeira com meus sobrinhos pequenos. Eternizamos um momento ao desenhar com cabelos no chão, antes que o vento, a vassoura ou a memória os levassem.

Dra Camila, sempre atenta, me enviou uma mensagem, para que eu fosse buscar as flores em nome da equipe. Victória recebeu um pelucinha laranja, gritou baixinho, que susto, quando tiramos mais uma foto. Mostrou o bichinho para o primo Davi, o que mais recebeu seus olhares e beijocas. Iza amou as flores, já não chorava mais. Mãe e filha estavam lindas. O dia na UTI foi mais uma vez puxado, um pouco mais emocionante, certeza. Sextou e saímos recarregados, cobertos de razão, emoção e gentileza, fios de cabelos e casquinhas de amendoim.

SUZANA BERLIM (2023)

A foto da capa foi em maio. Captei algo enquanto a mamãe Iza arrumava o cabelo de Maria Victória. A menina olhou para mim e me pegou em cheio enquanto fotógrafa. Era para o dia das Mães e eu estava lá, pedindo poses incomuns. Para a dupla, mais um final de semana no hospital, mais uma internação prolongada. Victória já usava muitos outros medicamentos para muitos outros diagnósticos, agora este, no hospital, na veia, na alma, parcelado em muitos meses. O autismo protege a criança de algumas verdades, mas não alivia a dor da quimioterapia. Os olhos de Victória são os famosos que percebem tudo sem dizer nada, mas mamãe fala por eles, por elas e por todos.


5 respostas para “Sextou”.

  1. Avatar de Iza Monteiro
    Iza Monteiro

    Dra.Suzana vc é fundamental, muito obrigada.

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  2. Avatar de mercia lira
    mercia lira

    Sem palavras….

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  3. Avatar de Camila Solé
    Camila Solé

    Lindas e intensas: mãe, filhota e médica.

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    1. Avatar de Maria Verônica
      Maria Verônica

      Maravilha seu trabalho! Por mais médicos assim, esse acolhimento tão necessário no momento da doença, quando a doença deixa todos fragilizados.

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  4. Avatar de Viviana
    Viviana

    Quantas histórias lindas , a vida acontece dentro da UTI para todos os que estão lá, de ambos os lados 🥰

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