Kelly é mãe. Nessa disputa invisível, minha nota é dez. Não, não acredito no ranking de melhor mãe do mundo. Cada ser vivo tem a sua, cheia de amor, boas intenções, fé, drama e o quiserem acrescentar. Mas me deixem contar uma história. Conheci mãe e filhos nas poucas internações de Davi e Luís, irmãos com pouca diferença de idade e um diagnóstico complicado. A atrofia muscular espinhal, ou AME, é uma condição genética que, em algumas apresentações, aparece nos primeiros meses de vida e afeta a mobilidade e respiração de modo progressivo e sem comprometimento neurológico. Aos poucos, a criança perde marcos de seu desenvolvimento até precisar de dispositivos e tecnologia para respirar.

Eu acompanhei um caso no finalzinho da faculdade, um menino que morava no hospital, não sabia que alguém poderia morar ali. Naquela época, o conforto não era uma questão e nos acostumamos a ver a mãe ao lado do leito por algumas horas dia, numa cadeira ou nem isso. Me lembro de 3 crianças pequenas com diagnósticos diferentes, todos dependentes de algum suporte ventilatório. A expectativa era de 2 anos de vida. Me formei sem saber o desfecho daquelas histórias. Eu me lembro do carinho da equipe, alguma pista de humanização, uma prática que avançou ao longo dos anos para alívio conjunto.  Alguns anos depois, já pediatra, conheci Marquinhos. A TV era seu contato com o mundo e ficava ligada durante todo o dia, ele parecia gostar. Um dia, eu e Dr Andersen, decidimos dar uma volta com ele no hospital. Ajustamos tudo, convencemos a equipe. Marquinhos não podia falar, expressava-se com o olhar, mexia apenas os olhos e um dedinho da mão, neste dia, mais rápido. Ele suava e parecia cada vez mais aflito, decidimos voltar e ele se acalmou na frente de seus programas aleatórios, novelas, desenhos. Saímos frustrados como jovens médicos bem-intencionados que não sabem de nada. Ignoramos avisos na nossa idealização de bem-estar alheio. Sim, fomos avisados por enfermeiros que conheciam Marcos, ele não vai gostar. Ele não gostou. Marcos viveu por 8 anos conosco. Soube de sua partida já longe dali, imaginei um menino cheio de energia levantando-se do leito, quando foi da sua vontade.

Ao longo da minha vida profissional, conheci outros casos de AME, histórias e emoções. A qualidade na assistência esticou o tempo e o aprendizado com as famílias. Não há cura, mas algumas propostas em andamento. Não sei o que faria do lado de lá, na minha bagagem, experiências e crenças, algumas opiniões inúteis. Desse lado, escuto e guardo curtas biografias. Já estou querendo contar outra, mas agora é a vez de Kelly e seus meninos.

Mamãe Kelly não era fácil, fisioterapeuta, tinha opinião respaldada. Era uma estudiosa da condição de seus filhos, atenta às novidades farmacêuticas e ventilatórias. Perdíamos fácil na discussão mas os meninos tinham outras demandas. Kelly precisava escutar nossas decisões sobre nutrição, antibióticos e toda a complexidade da terapia intensiva que nos cabia. Um desafio de interação e confiança que eu até gosto. Estamos do mesmo lado, Kelly, te escutamos, mas confie.

As crianças tiveram alta e nunca mais voltaram. Kelly tem uma UTI em casa, coordena uma família que também é composta por uma adolescente e uma bebê. Kelly é mãe em várias frentes e versões. Tiramos uma foto do Davi no dia dela, naquele segundo domingo de maio. Uma foto linda que usei como exemplo em mais um curso de fotografia. Fui chamada a atenção pela falta de contrastes em preto e branco. Aprendi e fiz correções. Tratei uma foto com defeitos técnicos, mas gostava dela por outros motivos. Um abraço amoroso e seguro de uma mãe, um filho cheio de dispositivos e fragilidades. Kelly era emoção e razão, era a dona de uma UTI domiciliar, a dona de argumentos e propostas, dona de sua maternidade cheia de desafios.

Algum tempo depois, uma fisioterapeuta nova foi apresentada à equipe. Eu conhecia aquele rosto, mas não reconhecia seu corpo uniformizado e equipado com estetoscópio. Olhei para ela, espremi meus olhos, me lembrei da foto e corrigi novamente uma imagem. Você já esteve aqui? Com seus filhos, eu acho. Ela sorriu. Já estava ali há alguns dias, me disse que apenas eu e Dra Cira a reconhecemos. Eu tinha um atalho, a memória em fotografia e admiração. Dra Cira não esquece ninguém, não vale. Seja bem-vinda, como estão os meninos? Kelly tornou-se uma referência para as particularidades que envolviam outras crianças na mesma condição. Um dia me contou que também aconselhava os grupos de apoio às mães de AME. Sua dedicação e generosidade lhe traziam prestígio, mas também grande desgaste emocional, envolvia-se com histórias semelhantes e desfechos diversos. A mãe fisioterapeuta estava sempre alcançável, sem se permitir qualquer folga ou distância profissional, em nenhum momento ou lugar. Não existia chegar em casa sem as mesmas demandas do trabalho, não existia final de semana sem preocupações ou ajustes ventilatórios.

Uma imagem. Kelly estava sempre bem arrumada, maquiada, em forma e disposta todos os dias. Pronto. Daí meu prêmio para essas mulheres que fazem um dia durar 56 horas. Que horas ela acorda? Quando malha? Como fez esse delineado nos olhos? Que roupa mais linda, meu Deus. Sim, como mulher que acorda quase sempre atrasada, que sai tomando café no elevador, fingindo normalidade, que penteia com as mãos os cabelos molhados no espelho em movimento até a garagem, posso afirmar, algumas mulheres não são exemplos impossíveis, elas simplesmente existem. Elas não pedem seguidores nem aplausos, mas nossa inveja. Brincadeira. Kelly e tantas outras merecem nosso apoio e apenas isso. Ela é sábia e elegante com seus altos e baixos, com queixas, vulnerabilidades e delicadezas humanas como todas nós. Metade do mundo são mulheres, a outra metade, os filhos delas. Não, não julguem a frase, não é minha, apenas aceitem ou entreguem as medalhas douradas.

Suzana Berlim (2023)


4 respostas para “Mais uma história de amor”.

  1. Avatar de Bárbara Lalinka
    Bárbara Lalinka

    Perfeito como sempre.

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  2. Avatar de Mércia lira
    Mércia lira

    Parabéns Suzana pela narrativa real e carinhosa feita das crianças com AME e suas mães que são verdadeiras leoas lutando e defendendo seus filhos e seus direitos . Mulheres que como você tão bem relatou dão exemplos de AMOR , de resiliência .

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  3. Avatar de Maria Verônica
    Maria Verônica

    Rotinas pesadas, administradas , superadas, força que surge de quem sobrevive a longas caminhadas nos hospitais. Palmas e palmas!😊👏👏👏

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  4. Avatar de Camila
    Camila

    Adoro essa história. Mais um parabéns!

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