Alerta emotivo, conteúdo sensível e cativante. Essa história, eu quero contar há muito tempo, mas esperei um intervalo justo para revisitar uma memória.
Liz esteve conosco em uma biografia curta, cheia de esperança, angústia e amor. Escolhi contar algumas partes. Antes do conto, teve foto, vou começar assim. Liz foi fotografada por mim, mas sem querer. A pequena não participou dos ensaios fotográficos na UTI, por pouco. Uma vez, adiamos por algum motivo, deixamos para o dia seguinte e ela piorou sem nos avisar. Precisou de mais oxigênio, mais recursos e foi para ventilação mecânica. Tudo bem, deixamos para uma nova oportunidade, ela vai melhorar. Liz ficou intubada por semanas, longas semanas. No Dia dos Pais, marcamos uma tentativa de extubação, ela estava pronta. Vai dar certo, desejamos. Eu me preparei para o ensaio, deixei toda a minha atenção no quarto 05. Sabia que, mesmo que ela precisasse voltar para ventilação, teríamos algum tempo para as fotos.
Liz Estrela era uma bebê linda e de nome importante. Chegou ao nosso hospital transferida da maternidade, com um pouco mais de 1 mês. Nasceu com síndrome de Down e uma cardiopatia que comprometia seu pulmão. A equipe de intensivistas e cardiologistas estudavam a melhor terapêutica, clínica ou cirúrgica, discutimos várias propostas. Havia otimismo e receio, ela não respondia aos tratamentos, mesmo os mais inovadores, e não resistiria à cirurgia.
Andréa, a mãe, era amorosa e gentil, estava cansada. Seu olhar era doce, às vezes, de dúvida, às vezes, de puro amor. Alguns dias, ela não queria conversar, em algumas madrugadas, se abria com a equipe. Todos estavam envolvidos com sua batalha, mas alguns plantonistas foram escolhidos por delicada consideração e empatia. Igor, o pai, era grande e de grandes olhos verdes que, algumas vezes, pegavam fogo. Uma vez, saiu de manhã, após uma noite difícil, direto para o pronto-socorro. Ele estava corado e cansado, suspeitou que sua pressão estava alta. Perguntamos se poderíamos ajudar, ele brincou, gordinhos não ficam na fila, já colocam a mão no peito na triagem. Eu adorei a gracinha, ainda que mórbida, pedi que se cuidasse, que mandasse notícias. Tivemos outras conversas mais sérias. Ele tinha perguntas e tinha pressa. Nós não tínhamos respostas, nem tempo.
Naquele Dia dos Pais, eu quis fotografar Liz e o papai Igor. Não estava escalada, mas apareci em missão. Passei nos quartos para aviso e preparativos. Entreguei uma lembrança aos acompanhantes, um chocolate grampeado em um texto, uma história conhecida. Um pai, técnico em hidráulica, desenvolveu uma válvula, um dispositivo que revolucionou o tratamento da hidrocefalia. Infelizmente, não teve tempo de salvar seu filho, mas ajudou muitas outras crianças. Considerei uma história-presente, quis agradar. O texto e o chocolate me espiavam no leito 5, intactos na mesinha, perto da TV. O quarto estava cheio, equipe plena, em alerta. Eu visitava os outros leitos e voltava, para as notícias e minha vez. Não conseguimos. Liz ficou grave e foi reintubada em poucos minutos. A tentativa mexeu com a estabilidade, dela e nossa, e tivemos que otimizar todo o tratamento. Não podíamos arriscar uma nova extubação, as alternativas terapêuticas se esgotavam. Decidimos, naquele mesmo dia, programar a traqueostomia. Eu mantive a minha palavra, queria sua foto e sua história. Mas não seria naquele domingo.
Um dia, o pai perguntou, ela tem chance de ir para casa? Não sabia responder, confusa em desejo, promessa e realidade. Quis dizer que, se sua preocupação era se permitir algo, tarde demais, já estava apegado a bonequinha de poucos quilos. Quis explicar que o roteiro e o tempo da viagem não quantificam ou qualificam emoções. Também não decidimos sobre sentimentos, apenas sentimos, mesmo sem a nossa permissão… Acho que falei isso. Eu tentei falar bonito e com clareza, mas me enrolei nas palavras e saiu alguma coisa embolada, apesar da boa intenção. Ele respondeu, não entendi. Eu não quis repetir, desviei o olhar e chequei a vazão do soro com o indicador. Tudo certo, volto já. Se eu já sentia algo por aquela bebê, minha colocação não fazia sentido, nem tenho certeza se ele perguntava sobre o direito ou privilégio de sentir. Acho que ele entendeu. Fui para o posto médico, fugitiva.
Um dia conversamos, equipe e os pais. Nos convencemos, com dificuldade, do esgotamento de recursos. Tivemos que ser honestos com a família sobre os próximos passos. Liz precisava de doses cada vez mais altas de medicamentos para garantir seus batimentos cardíacos. Estava tolerante a sedação e tivemos que acrescentar outros sedativos e analgésicos. Ela interagia cada vez menos e se afastava pouco a pouco. A conversa sobre cuidados paliativos nunca é fácil, procuramos seguir um roteiro respeitoso, de acolhimento e também de orientação. Ficamos de frente para o estado de fragilidade humana mais delicado e doloroso, um casal em despedida de um filho. Nos enxergamos em espelho e luto.
Quero contar sobre a minha foto, não esqueci. Mesmo antes das decisões paliativas, Liz já ia para o colo da mãe e passava muito momentos assim, embalada e segura. Percebi com atraso, tantas roupas lindas. Um dia, questionei sobre como era possível vesti-la sem se atrapalhar com tantos fios, acessos, sondas, tubos. A mãe me contou o segredo, uma solução simples, inteligente, elegante. Ela cortou todos os vestidos pelas costas. Assim, podíamos chegar em seu corpinho com facilidade, para ajustes de eletrodos, medicamentos e curativos. Me encantei com a cena de pura ternura entre mãe e filha. Perguntei se podia tirar uma foto, ali com o seu celular, a mãe merecia ver aquela cena de outro ângulo. Tive que usar o meu, suas mãos não alcançavam seu telefone. Lamentei minhas chances perdidas, Liz estava linda, leve e livre de botões e fechos. Soube que usou todo o enxoval que a esperava, na casa que não chegou a conhecer. Pedi o telefone e mandei a foto para a mãe.
Após a nossa reunião, decidimos não aumentar a dose dos medicamentos, o oxigênio ou os parâmetros ventilatórios. Não colhemos mais exames, reduzimos alarmes e monitores, permitimos a sedação e a analgesia mais confortável. Permitimos privacidade, diálogo, colinho. Liz foi ninada e acalentada, vestida como bonequinha, do papai e da mamãe.
Suzana Berlim (2023)


LIZ ESTRELA * 23/04/2022 + 15/11/2022
A @mulherquefica outro dia disse que às vezes precisamos criar alguns rituais para passar por alguns momentos mais difíceis durante o luto. Há dias, eu pensava em como seria o meu primeiro dia das mães sem a Liz nos meus braços. Pensei em fazer uma trilha bem longa, acompanhada pelas borboletas que insistem em estar junto comigo nos últimos percursos, mas a minha disposição anda muito curta. Pensei em passar o dia deitada debaixo do edredom, sem falar com ninguém, vendo fotos e vídeos da Liz e chorando. Algo em mim dizia que ainda não era isso que eu queria para esse dia. Há umas semanas pensei em algo, mas não dependia só de mim para realizar: voltar ao Hospital Brasília, lugar que foi nossa casa por 153 dias para levar uma simples mensagem de carinho às mães que estivessem com seus filhos internados na UTI. Para minha surpresa, minha ideia foi acolhida pela equipe do hospital. Ao chegar lá, pensei em desistir, em deixar a lembrancinha com alguém para entregar à elas, mas eu consegui ir além. Busquei forças do alto e passei por aquela porta em que tantas vezes eu entrava agoniada, doida para ver a Liz e ter a certeza que estava tudo bem, abraçá-la e sentir alívio pela graça de poder desfrutar de mais um tempo com ela. Ao passar por aquela porta ontem, senti uma paz e um conforto em saber que a minha filha está bem e que ela me guiou para aquele momento singelo e sublime. Tive o prazer de rever médicas e equipe da enfermagem à quem só posso rezar e pedir à Deus que continuem no exercício dessa profissão tão nobre. Tive o prazer de desejar àquelas mães, força para seguir por mais um dia ao lado dos seus amados filhos. Saí de lá com o coração aquecido e muitas lágrimas nos olhos, não de tristeza, mas de gratidão por ter voltado ao lugar em que pude exercer o melhor papel da minha vida: o de mãe da LIZ. Que eu possa ser alento, ainda que com a minha dor da saudade, nos dias nublados de alguém.
Andréa Estrela (mãe da Liz)


