Bárbara soube da condição de Gabriel ainda na gestação. Desde a suspeita até a confirmação da Síndrome de Edwards, ela passou por muitos sentimentos. Chamamos de luto do bebê idealizado. A cada consulta médica ou pesquisa na internet, recebia informações sobre órgãos e sistemas alterados, partes de um bebê que construíam uma imagem diferente do esperado. Sua barriga crescia e ela precisava lidar com questões sobre prognóstico e sobrevida. Foram meses de angústia, medo, revolta e esperança, sentimentos que se alternavam ou se aglomeravam enquanto ela se preparava para conhecer o filho e suas próprias reações. A religiosidade trouxe alívio e compreensão, ela se dispôs a pôr em prática um plano infalível, o amor por seu primeiro bebê.
Gabriel nasceu e o desafio maior já estava superado. Houve comemoração e expectativa. Na maternidade, passou por complicações pulmonares, cardíacas e renais, aqueles pedacinhos de um todo se recuperavam. Novas complicações, novos tratamentos, novas propostas, Bárbara me contou sobre momentos de confiança e de puro desânimo. Os dias eram longos ao lado de Gabriel, as noites ainda mais, quando ia para casa e imaginava seu filho em sua incubadora, um útero postiço que promovia calor artificial e bipes fatigantes. Ela imaginava fazê-lo dormir em seus braços, embalado por alguma canção de ninar.
Quando Gabriel veio transferido da maternidade para a nova UTI, Bárbara trouxe uma biografia poderosa e extensa, uma vida inteira de poucos meses. O bebê foi instalado em seu novo leito, teria companhia dia e noite. No quarto, havia seu berço, um sofazinho para descanso e visitas, banheiro, TV, uma mesa dobrável para refeições. Bárbara e o papai Obara adaptaram-se e combinaram novos planos. Queriam ter alta e ir para casa.
Bárbara era boa de conversa e dividia suas angústias e sonhos, nos cabia ajudá-la a realizá-los, claro. Obara pai era tranquilo e carinhoso com o filho e com a equipe. Gabriel o poupava de sustos, guardava quase sempre o disparar de alarmes para sua mãe, testava o coração materno e nossas pernas em corridas ao leito, mais tarde, devia contar suas travessuras ao pai, certeza.
Após algumas semanas, quando chegou o Carnaval de 2022, a UTI estava com poucos pacientes. Por algum acaso, eram bebês de internações longas, ligados a dispositivos e sem alta prevista nas semanas seguintes. Para animar o ambiente, combinamos alguns enfeites e circulamos com tiaras floridas, anteninhas e perucas. Oferecemos adereços aos pais, e para os bebês, algum enfeite aprovado pelas normas hospitalares. Tive uma ideia pouco elaborada para fotografia, pai, mãe e bebê, olhem para cá, pronto. Gabriel já frequentava alguns colinhos roubados e ficou apertadinho entre seus pais para uma foto muito rápida, desconectado do respirador. Em casa, olhei para aquelas fotos e resolvi modificar o cenário. Eram poucas imagens e eu tinha tempo para experimentar um editor gráfico. No meu fundo carnavalesco, toma lá confetes e serpentinas, eu testava a ferramenta e a combinação de cores. Não usei o mural, seria estranho com apenas 4 fotos e, diante da minha insegurança criativa, achei que era uma boa desculpa para não expor. Entregamos porta-retratos às famílias e continuamos enfeitados por alguns dias.
Soube depois que todos os pais agradeceram o presente. O pais do Gabriel disseram à equipe que aquela foto era a primeira da família. O porta-retrato foi colocado na mesinha dobrável. Era o primeiro registro impresso daquele trio de foliões, na tímida festa de mais um carnaval pandêmico. Gabriel não sabia o que acontecia ou deixava de acontecer longe dali, seu primeiro carnaval tinha a cor azul de suas anteninhas.
Após 6 meses de internação e algumas cirurgias, Gabriel foi para casa, para um quarto adaptado, onde podia receber cuidados específicos de profissionais treinados e visitas mais tranquilas. Em sua nova rotina, seus pais podiam dispensar parte da logística e rigidez hospitalar e se preocupar mais com pequenos grandes prazeres, como banhos perfumados, combinação de roupas, trilha sonora de ninar e de brincar. Gabriel recebia em seu quartinho decorado, estímulos inéditos de brinquedos e sons que provocavam risadas gostosas, uma conquista merecida e saboreada todos os dias. A casa, digo, lar, enchia-se de doçura a cada amanhecer e anoitecer em família.
Em uma quinta-feira recebemos a notícia de sua partida. No início daquela manhã, Bárbara postou em suas redes, um acontecimento repentino e fatal. Senti preocupação e tristeza, soube que ela estava bem, suas postagens falavam sobre amor e gratidão. Meses depois, assisti uma live em sua página, sobre aquele dia. Bárbara estava diferente, mal a reconheci, estava calma e iluminada. Ela descreveu detalhes que me fizeram chorar de uma forma inédita, diante de uma perda que penso estar acostumada a experimentar. Após perceber que Gabriel havia partido naquela manhã ensolarada, Bárbara vestiu Gabriel com a roupinha que usaria em seu primeiro aniversário, desconectou todos os dispositivos, como sondas e monitores e desligou todos os alarmes. Saíram para um passeio no jardim, somente os dois. Para ele, cantou baixinho uma canção sobre passarinhos, quem vou e quem chorou, e assim se despediram.
Os onze meses de Gabriel, cinco em casa, deixaram lembranças de carnaval, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais e muitos outros dias inesquecíveis que transformaram aqueles pais. Pais de Gabriel Seiji Obara. Bárbara mantém sua rede social ativa e ajuda outras famílias que passam por momentos que ela conhece bem. Sua mensagem é sobre ressignificar, seja a espera, a vivência ou a saudade. Ressignificar é como trocar uma lente fotográfica, ajeitar o foco com cuidado, mudar um filtro para alterar cores e matizes, ou mesmo recompor o fundo de uma imagem com serpentinas.
Suzana Berlim (2023)


