Maria Helena não foi para casa. Após dias e noites sob cuidados médicos, sua esperada alta hospitalar indicou outro destino, outro hospital. Ela nasceu prematura, não teve colo, não teve seio, foi alimentada por tubos, foi embalada por medicamentos para sua dor e para seu sono, foi diagnosticada com uma síndrome genética rara. O novo hospital não foi o destino desejado, mas o programado para garantir sua continuidade.

Ela chegou em um dia comum, um dia de trabalho dividido por setores e escalas. De prontidão, ligamos os monitores e alarmes. Ouvimos mais uma vez sua história, um relatório médico que era o dobro da sua idade, o triplo do seu tamanho. Seus pais, jovens e exaustos, trouxeram seus pertences e expectativas. Nos conhecemos diante de Maria, começamos um novo plano, alinhamos nossos desejos e expectativas.

Novas propostas cirúrgicas, novas soluções, as intervenções passaram a ser discutidas em equipe e com a família. Maria Helena já possuía um buraquinho na barriga para evacuar, adicionamos outro para alimentação, outro para que urinasse. Tivemos que fazer um buraquinho no pescoço para que respirasse por aparelhos, outro para deslocar seu esôfago. Os buraquinhos e o desconforto tomavam conta de seu pequeno corpo. A cada intervenção, surgiam novas complicações e muitas vezes, questionamos o momento de parar.

A cada troca de turno, dia e noite, Maria Helena era reavaliada e conduzida por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas. Ela dormia sob sedação profunda naquelas idas e vindas, sua vida seguia em ciclos de doze horas. Nossa rotina era entrar, examinar, conversar, decidir, até que o colega do próximo turno chegasse. Em uma noite de trabalho, encontrei a mãe, Juliana, apoiada ao berço, não se virou quando me aproximei. Quero a minha filha de qualquer forma, mas não a qualquer custo, ela disse. Eu apenas concordei e segui meu trabalho, examinar, decidir, registrar.

O tempo de internação e a gravidade quase que constante, nos faziam pensar sobre a consciência de Maria Helena. Se ela acordasse, quem estaria ali para nos agradecer ou, quem sabe, nos acusar? Ela não participava das nossas decisões, sua vida seguia entre tubos e alarmes, relatórios extensos e madrugadas insones, até quando? Sua alta hospitalar não tinha data e talvez não tivesse razão. Vi seu pai, Guilherme, dormir sobre o leito segurando seus dispositivos para garantir sinais de vida. A cânula em sua traqueia exigia um ângulo impossível, ele ajeitava e segurava com firmeza. Ela merecia mais.

Longe dali, o irmão Miguel completou dois anos de vida. Em suas visitas, estava sempre animado com o passeio, distribuia carinho, soltava frases incompletas e engraçadas. Logo procurava o colo dos pais e chorava para não ir embora. Miguel foi internado uma vez, diagnosticamos saudade. Um desconforto respiratório o colocou no quarto em frente. Seus pais atravessavam o corredor para unir a família naquela casa improvisada e sem portas. Miguel ficou calado e acolhido, perto de seus pais e de sua irmã. Sua recuperação foi rápida, felizmente, e ele foi para a outra casa.

De um modo geral, por distração ou correria, era difícil pensar em qualquer alegria no quarto seis. Com o tempo, percebemos, entre medicamentos e curativos, uma combinação de sapatos, meias e vestidos. Juliana exercia sua maternidade incomum em intervenções não médicas elegantes. Sem querer, suas ações modificavam a rotina daquelas manhãs. Após o banho, Maria Helena era uma surpresa em cores e acessórios. Os comentários surgiam, como está linda hoje, a gente confirmava, em visitas disfarçadas ao leito.

Naquele carnaval de 2019, nossa paciente pequenina estava grave, pensei no dilema da fotografia do bebê enfermo. Qual história seria contada? Decidi por pedir licença e sugerir uma sessão. Um arranjo para o cabelo estava perfeito para sua roupinha durante aquela soneca casual. Levanta a cânula, passa de cá, esconde aqui, coloca essa bonequinha por cima. Fizemos uma composição interessante. Os pais sugeriram e ajudaram nossas difíceis escolhas. Registrei seus rostos naquele segundo. Aquele sorriso me respondeu algumas questões. Maria Helena foi um sucesso, sua foto foi exposta no mural, mas sua torcida alcançou outros corredores. Naquela unidade de terapia intensiva, ela não era apenas diagnóstico ou resistência, ela existia.

Juliana e Guilherme- fevereiro 2019

Em 2020, a menina dos buraquinhos foi para casa após longos meses. Passou a ter cuidados de uma equipe atenciosa de home-care. Não dependia mais de respirador, comemorou muitos aniversários, fez passeios, viagens e foi até a praia, um esquema muito planejado, ousado e possível.

Maria Helena exibida, teve várias outras internações por intercorrências e para correções de dispositivos. Esperta, participou de outros ensaios fotográficos. Parecia escolher as datas.

Natal 2020
Dia das Crianças 2021

Em 2022, recebi sua visita na primeira exposição. Foi um reencontro lindo e emocionante. Seus pais sempre incentivaram esse projeto e seguimos nossa parceria.

CBMI – lounge da AMIB, 2022

Em maio de 2025, Maria Helena foi trazida às pressas para o hospital. Depois de tantos sustos, recebemos a menina preocupados, mas sempre otimistas. Foi tudo muito rápido e Maria Helena nos deixou após alguns dias de cuidados intensivos. Seus pais não estavam preparados, mas estavam prontos. Depois de tantas lutas, eles pareciam ter a certeza de que aquele encontro foi pleno enquanto possível. Guilherme estava ao lado da filha pela manhã, quando tivemos a mais delicada e honesta conversa. Decidimos desligar um dos medicamentos, o óxido nítrico, um gás tóxico que impedia a visita de sua mãe. Juliana estava grávida e precisava se despedir de sua primogênita. Depois que ela chegou, Maria Helena se permitiu partir.

Ao final da manhã, a família se despediu de Maria Helena. Avós, tios, primos e amigos foram chegando e se espalhando pelo quarto. Juliana deitou-se na cama e ficou abraçada com a filha por muito tempo. Eu pedi licença e entrei. Pedi baixinho para ler esse texto, na sua penúltima versão. Era um momento íntimo, mas eu precisava agradecer minha musa e sua família, os protagonistas da minha primeira história, meu primeiro conto-crônica, uma não ficção de amor

Suzana Berlim (2022) atualizado em 2025

Maria Helena nasceu com uma condição chamada Sequência de VACTERL, uma associação de malformações congênitas, entre elas, defeitos vertebrais, fístula traqueo-esofágica, atresia anal, defeitos cardíacos, anomalias renais e de membros. 

Nasceu em 19/10/2019 na Maternidade Brasília, prematura de  33 semanas e 5 dias, pesou 2010 gramas. Intubada ao nascer, foi também submetida à correção de atresia duodenal e colostomia. Em 05/12/2019, foi transferida para UTI pediátrica do Hospital Brasília. Após várias cirurgias e complicações, sua estabilidade clínica permitiu alta para home-care em 11/08/2020.


2 respostas para “O Fabuloso Destino de Maria Helena”.

  1. Avatar de ELOISA DE ABREU MARQUES
    ELOISA DE ABREU MARQUES

    Que história!

    Muito emocionante, mesmo com tudo se torna linda!

    parabéns por sua linda profissão e dedicação!

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  2. Avatar de Giovana Pinho
    Giovana Pinho

    Parabéns! Parabéns! Sou amiga da avó que me enviou. A princípio, pensei ser um documentário da vida de Maria Helena descrito por uma escritora. No final soube que é médica, fotógrafa e, para mim, escritora. Parabéns.

    Curtido por 1 pessoa

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