Bernardo não gostava de conversa fiada. Virava os olhos, bufava quando alguém se aproximava com simpatia forçada. Sabia muito bem que estava na hora do banho, medicamentos ou exames. Ele queria sossego, seus pais por perto e apenas isso. Bernardo tinha síndrome de Down, já tinha passado por cirurgias cardíacas quando pequeno, recebeu quimioterapia quando descobriu a leucemia. Foi duro passar o Natal internado, foi escolhido como modelo central do primeiro mural de fotos. Segurou a plaquinha de Feliz Natal, sem entender nossa empolgação.
Ao longo do tratamento, teve complicações, precisou de internações repetidas para sessões de quimioterapia. Em maio, estava carequinha, fez biquinho na foto do Dia das Mães, uma das minhas preferidas. Sua mãe sussurrando ao seu ouvido para acalmá-lo, ele queria paz, então, nos apressamos em clicadas inoportunas com a convicção de um propósito relevante.
Após um longo tratamento, Bernardo foi para casa, ou casas. Sob guarda compartilhada, recebia mimos de duas famílias, era pequeno e não conhecia outra realidade, amava seus pais igualmente. Quando ambos perceberam, após alguns meses, novas manchas no corpo, ele havia acabado de aprender a andar de bicicleta, sem rodinhas. Um grande feito para uma criança com limitações de coordenação e força muscular. Seu anjo da guarda decidiu protegê-lo de qualquer queda ou sangramento antes de voltar ao hospital. Descobrimos a recidiva da doença aos seis anos de idade.
Ele não entendia, estava bravo e sentia dores. Sua braveza era doce em expressões que desarmavam a equipe e enchiam o quarto de carinho e compreensão. Era injusto. A gente ria de seus resmungos com respeito. Os esforços eram intensos para amenizar aquela dor resistente aos medicamentos. Bernardo recebia mais que drogas e curativos, aquela criança era querida e disputada pelas enfermeiras para cuidados e proteção. Bernardo, desinteressado, passava a mão na barriga e chorava algumas vezes. Não conseguia comer. Um dia, pediu sorvete e foi atendido com prontidão e expectativa. Ficou satisfeito em desejo, mas sua dor voltou com força e covardia. Dr. José Carlos, o oncologista, estava abatido, repetiam-se os exames e as más notícias. A doença, dessa vez, parecia mais rápida e agressiva. Bernardo não estava mais bravo, estava triste. Não havia mais risada de seus resmungos e bufadas. A vontade de todos era aliviar o pequeno corpo que não queria estar ali, naquele quarto cada vez mais silencioso e sem cor. A conversa com a família foi honesta, a proposta era manter o tratamento e a esperança, mas as chances diminuíam a cada dia.
Bernardo teve uma convulsão numa manhã, foi sedado e acolhido. Seu pai, deitado ao seu lado, não conseguiu nos encarar. Chamamos a mãe que, sem opção, se fez forte e corajosa. Não desejo isso, não quero, ela dizia. Conversamos numa sala, pai, mãe e equipe sobre as próximas horas. Da conversa nublada, houve consenso e sabedoria, algumas histórias cintilaram em conforto, soubemos das fugas de casa descobertas pelo porteiro do prédio, da cachorra Chica, de seus brinquedos preferidos. A delicadeza dessas memórias nos provocou um sorriso contido e necessário.
Bernardo partiu no início da noite, cercado pela família, recebendo cafuné e ternura. Dr. José Carlos chegou um pouco depois, disfarcei meu olhar ao notar sua emoção, observei de longe sua despedida sem pressa. Após muitos meses, quando convidei a mãe para uma conversa, entreguei-lhe aquela foto do dia das mães, prometemos não chorar. Ao lembrar de sua partida, ela me disse que quando chegou ao leito, ele abriu os olhos e a reconheceu. Chamou-a de mamãe e adormeceu pela última vez. Ela me disse o que considerou ao avaliar seus sentimentos, o sofrimento de perder aquela criança. Naquele momento, a dor que era conjunta, tornou-se apenas dela, que poderia aguentar, aguentaria, ele já não suportava mais.
Suzana Berlim (2022)
