Algumas histórias eu quero contar. Escrever, fazer um filme, escolher uma música. Tenho uma tentação criativa, completar as partes que faltam, confesso. Algumas memórias da minha infância não fazem sentido, não tem lógica na minha vida adulta, mas não quero desmenti-las, não quero ressignificar sentimentos que me causam apenas dúvidas, não sofrimento. Mentiras sinceras me interessam, já dizia Cazuza. E eu gosto de historinhas.

Esperei a parte que faltava, pedi aos pais, mas com medo de esquecer a parte que me cabia, comecei a inventar, digo, escrever. Vamos lá.

Naquele domingo de manhã, recebi meus pacientes e alguns resumos. Febre há 3 dias, tosse, coriza, irmão doente, poucas variações de uma anamnese pediátrica sazonal, de resfriados e complicações. A criança do leito 15 chegou na véspera, estava grave e foi para ventilação mecânica ainda de noite, segue sedada e sob cuidados intensivos. No momento, está estável. A noite foi difícil para o paciente, seus pais e equipe.

Apenas um dia antes, um jovem casal chegou de Belo Horizonte, convidados e padrinhos do casamento de outro casal em Brasília. Trouxeram Bento, um bebezinho de meses, afilhado dos noivos. Imagino uma cena, telefonemas, horários no salão, os últimos ajustes nas roupas, quem vai com quem e que horas. Bento estava gripado e os pais, em correria e gentileza, pensaram que a piora momentânea devia ser estresse do tempo de viagem e mudança de rotina. No papel de convidados, amigos e padrinhos, longe deles ser mais um motivo de preocupação aos noivos. A mãe abraçou o bebê, amorosa e otimista, vai melhorar. Bento tossiu mais forte.

O noivo, padrinho do bebê, metade médico, metade anjo, escutou. No meu flashback compartilhado, ele se transportou para um hospital universitário, para um pronto-socorro pediátrico barulhento. Há muito tempo, seus ouvidos de radiologista estão ligados a fones, escutam rock, MPB ou jazz, enquanto seus olhos analisam imagens diversas do corpo humano. Apesar da distância temporal, o médico nunca esqueceu aquele alerta sonoro, um som espástico e dolorido.

Ele volta do flashback, larga o nó de sua gravata e vai até o bebê. Melhor ir para o hospital. Ele olha para os pais, tudo bem, levem ele, vamos resolvendo por aqui, mandem notícias. Os pais seguem para o hospital indicado, meio produzidos para o evento, meio desarrumados pelo susto. O bebê foi internado imediatamente, recebeu oxigênio e foi encaminhado para a UTI. Naquela noite, de um lado da cidade, o bebê aumentava o esforço para respirar, a equipe preparava o material para a intubação. Do outro lado, uma linda cerimônia, um sim preocupado, uma felicidade engasgada até as próximas notícias.

Assumi o plantão de manhã, examinei o bebê, ajustei alguma coisa e fui conversar com os pais. Recebi algumas informações que viraram esse texto, mas naquele momento, a preocupação era garantir a sincronia de sua respiração aos equipamentos e avaliar a resposta as medicações. Ao final da manhã, recebi o padrinho, o recém-casado, num pós-festa meio confuso. Parabenizei seu matrimônio e sua perspicácia. Elogiei a conduta fora de sua especialidade, mesmo quando estava imerso em preocupações e distrações de um dia tão importante. Bento seguia bem, o padrinho foi educado e compreensivo. Chamei o colega médico para mostrar o RX. Ele ficou aliviado e agradecido. Ouvi seu laudo, considerei suas palavras de especialista, mas minha admiração ainda reverenciava o pediatra disfarçado e principalmente, o médico que todos queremos ser. O que aponta, identifica e age, não importa onde ou quando.

A história, daí pra frente, seguiu a rotina de tratamento de mais um caso respiratório, nosso cotidiano nos últimos meses. Bento ficou intubado alguns dias e teve uma boa evolução, apesar da gravidade. Seus pais perderam o casamento, a festa e o encontro com os amigos. A viagem do final de semana se prolongou até o seguinte. Brinquei que naquela semana, os pais se vestiriam em traje de gala, salto alto e outros itens da bagagem elegante trazida de Minas. Eu queria colocar esse exagero e alívio cômico na história, mas creio que amigos garantiram o bem-estar da família. Pais estavam calçados e confortáveis, na medida do possível.

Após alguns dias, era véspera de carnaval, Bento já estava sem dispositivos, animado, esperando sua recuperação completa e alta para casa. Nosso pequeno folião, bem acordado, não queria perder mais festas. Bento recebeu anteninhas laranjas para uma sessão de fotos. A família não chegou a ver o painel com outras crianças e fantasias, voltaram antes para Belo Horizonte. Os padrinhos, acho que partiram em folia e lua de mel. Eu fiquei com as anteninhas, as fotos e uma história.

Eu conto um conto, aumento muitos pontos e finalizo assim, mais para prefácio que epílogo, mais para desejo do que fim… eles casaram-se, todos viajaram, e foram felizes para sempre!

PS: aguardo a versão original com bastidores corrigidos. Na dose real de drama e gracinhas, tudo é emoção!

Suzana Berlim (2023)


3 respostas para “Bento e a história de um casamento”.

  1. Avatar de Maria Elizabeth Monteiro de Castro Silva Silva
    Maria Elizabeth Monteiro de Castro Silva Silva

    Que história emocionante!
    Quantas vivências você pode compartilhar! Sua sensibilidade para lidar com os pequenos e seus pais nos dá um orgulho danado de conhece-la.

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  2. Avatar de mfranciscablog
    mfranciscablog

    Que história linda! Uma verdade, duas verdades, alguma mentira (rs), mas, afinal, vê-se uma vida comprometida e de amor. Parabéns!

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  3. Avatar de Marilia
    Marilia

    Que história mais linda amiga!!

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