Sua mãe estava grávida quando recebeu o diagnóstico da pequena Ana Lucy. Leucemia. Aos 2 anos, prestes a ganhar um irmãozinho, a menina recebeu informações sem sentido e uma nova rotina. Internações, exames, quimioterapia, incerteza e medo filtrados para que não fosse tão difícil. Foi preciso explicar as picadas, os exames, a queda do cabelo, a náusea e todos os efeitos colaterais e que, aquelas pessoas uniformizadas que interrompiam suas brincadeiras, queriam ajudar e se importavam.
Tivemos poucas conversas, a mãe preocupava-se em manter o ambiente agradável e seguro. Às vezes, saia para amamentar o bebê recém-nascido. Ana Lucy era uma criança adorável, conversava sobre tudo, seu vocabulário assustava por tamanha variação e maturidade. Era uma delícia visitar seu quarto no meio da tarde, apenas para ouvir sua voz, sua empolgação em mostrar suas brincadeiras e desenhos. Houve uma visita, um momento que me marcou para sempre.
Numa noite, às três horas da manhã, atendemos um telefonema avisando sobre sua internação. Após cada sessão de quimioterapia, sua imunidade despencava e uma febre era uma grande preocupação que significava tratamento imediato. Ana Lucy teve febre naquela noite e nos preparamos de madrugada para sua chegada. Poderia ter sido de dia, pensei com preguiça justificável, mas egoísta. O dia tinha sido difícil, esperava uma noite tranquila na UTI. Eu e Dra. Cira, minha companheira naquele plantão, estávamos no corredor quando Ana Lucy apareceu ao lado de sua mãe. Arrastava uma mochila cor de rosa com rodinhas, quase do seu tamanho. A menininha andava apressada, conversava alguma coisa com a mãe e as seguimos até o quarto. Ficamos caladas observando aquela cena. Ela parou em frente ao armário e abriu as portas, ao lado de seu leito pronto, com lençóis muito brancos e esterilizados, bombas de infusão e monitores. Abriu sua mochila rosada, tirou sua bagagem cuidadosamente enquanto falava, calcinhas, aqui, fraldinhas aqui.
Eu nunca fui tão organizada ou animada com o desfazer de malas, sequer na melhor viagem ao melhor destino. Senti ternura e vergonha. Fiquei muda e quando olhei para o lado, percebi que compartilhava em parte, o sentimento com a minha colega, em silêncio e emocionada. A vergonha era só minha, imagino. Como pude em algum momento me sentir incomodada? Ainda bem que pensamentos não podem ser lidos, pensei com alívio. Tive vontade de abraçá-la e pedir desculpas, naquele momento, queria lhe dar todos os brinquedos do mundo, sorvete de todos os sabores, um superpoder, uma mágica que não a permitisse sentir nenhuma dor ou desconforto. Lucy, de fralda e febril numa madrugada gelada, me consolou sem querer com sua atitude positiva e gentileza inocente, eu quis chorar, me contive.
Solicitei exames e um acesso venoso, prescrevi antibióticos e desejei que ela dormisse rapidamente, que tivesse os melhores sonhos enquanto minha noite continuava, uma noite de insônia e reflexões.
Suzana Berlim (2022)

Minha Ana Lucy
As fotos daquele período sempre trazem muitas lembranças e reflexões. O interessante é que hoje em dia a emoção é maior e penso que, durante o tratamento, nos blindamos contra qualquer negatividade. Viramos uma verdadeira muralha!
Achei muito interessante saber um pouco do sentimento e visão de uma pessoa “que estava do outro lado do balcão”. rs
Sempre pensei, como são tantos pacientes que passam pelo hospital, que fosse mais difícil de manter tantas lembranças.
Mas me surpreendi, outro dia, quando fomos à emergência do hospital Brasília. Estava lotaaaaaddooooo de crianças no saguão (em junho deste ano). Quando entramos, o Thiago (enfermeiro) estava organizando as senhas e informações – diante do tanto de gente que estava aguardando atendimento, entramos de máscara, Ana Lucy, Davi e eu. O Thiago olhou para Ana Lucy e a reconheceu instantaneamente. Depois de quase 3 anos da última internação. Então de fato, são histórias que se cruzam e marcam a trajetória de todos os envolvidos.
Sempre lembramos com muito carinho todo o cuidado que, não só Ana Lucy, mas todos nós recebemos! Somos muito gratos!
Tem uma foto que você tirou que retrata bem os nossos dias na UTI, nossas caminhadas diárias entre o leito e a salinha de brinquedos, empurrando as bombas e soro e Ana Lucy levando a mochila rosa, maior que ela. rsrs
De uma coisa não posso discordar, que menininha corajosa!! Enfrentou tudo, sem nunca dar trabalho. Sempre colaborou. Tenho certeza que Deus esteve conosco, em todos os momentos.
O diagnóstico veio em abril/2018, Ana Lucy estava com 1 ano e 10 meses e eu com 7 meses de gravidez. Falei muitas vezes que a “nossa pandemia” começou muito antes de 2020, tendo em vista a necessidade de isolamento por causa do tratamento. Foram umas 18 internações, somando 89 noites no hospital brasília. Davi quase nasceu lá na UTI. rsrs Acho que a Dra. Cira que estava no plantão na madrugada que entrei em trabalho de parto. Ela e mais duas técnicas que foram nos acudir, ficar com Ana Lucy enquanto a Avó dela chegava e eu e Antônio corríamos para a maternidade. Senti a primeira contração por volta das 3h da manhã e ele nasceu às 5:52. Tivemos que nos dividir entre cuidar de um recém nascido e o tratamento pela vida de Ana Lucy. Perto do fim, veio a pandemia da covid, em que nos isolamos completamente, inclusive dos familiares, pois Ana Lucy era do grupo de risco. Passamos 4 meses sem encontrar ninguém fora do nosso núcleo familiar, além das idas à clínica para a quimio e ao laboratório para exames. Mas por fim, em 10 de junho de 2020, comemoramos a última químio. Ana Lucy já estava com 4 anos e Davi faria 2 no dia seguinte, dia 11/06. Com certeza foi uma emoção e alívio e tanto!
A foto que recebemos do hospital, como presente de dia das mães, fica na sala até hoje (a foto que estamos Ana Lucy e eu, rindo). Graças a Deus hoje são lembranças e que tudo correu bem. Hoje está uma moçona, cheia de personalidade e autoridade. Faz balé na escola, adora dançar e cantar. Ela e Davi são super parceiros. Mas como todos irmãos, tem dias que são beijos e tem dias que são tapas. rsrs
Um abraço!!
Yara da C. Ireland Scartezini (mãe da Ana Lucy) 2022

